sexta-feira, 3 de março de 2023

Dossiê da katana fajuta do samurai fake. (Autor: Sallet)

Normalmente costumo falar sobre artes marciais especificamente, e trabalhar para o desmonte de esquemas fraudulentos dentro desse meio e eles não são poucos. Mas hoje, depois de dar de cara com mais uma reportagem exaltando uma certa personalidade local, me senti na obrigação de evitar que mais pessoas sejam lesadas por esta pessoa, que se esconde atrás de uma imagem de “misticismo” se valendo de sua origem asiática.

Nihonto, as espadas japonesas, sempre estiveram cercadas desse misticismo, especialmente entre o público fã de cultura oriental, como animes e Manga. Por isso, não é de se admirar que alguém adotando uma persona que convalide essa mitologia seja tão bem aceita. Isso aconteceu em outros lugares do mundo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando muitos militares norte-americanos levaram espadas japonesas (a maioria “guntō”) como souvenir ao retornarem aos EUA. Nos atendo ao Brasil, pessoas ilustres, como Oda sensei, Oura sensei e seu aluno (que ainda está vivo) Tomizo Ishida: todos exímios pioneiros na fabricação de espadas do tipo japonês com os materiais locais aos quais tiveram acesso em terras brasileiras. Nenhum deles jamais se autoproclamou “samurai”, e todos eram legitimamente japoneses. Ishida nunca escondeu não ser de uma família tradicionalmente fabricante de espadas, pelo contrário. 

Depois desse pequeno resumo da história de katana-kaji no Brasil, temos de falar de uma quarta pessoa, que surgiu à mídia em meados de 2007, ainda nos tempos do Orkut, como “produtor de katanas” (katana kaji) autoproclamado. Na época, seu filho divulgou fotos de seus trabalhos em grupos de cutelaria e arte marcial. Enquanto alguns grupos de artes marciais não tão tradicionais e envoltas em um certo misticismo logo se renderam às graças do senhorzinho “espiritualizado do “reiki” e terapias alternativas, imediatamente, o trabalho recebeu algumas criticas de outros cuteleiros, pois haviam muitas discrepâncias nas lâminas em relação às espadas tradicionais. Os principais problemas dessas espadas eram sua espessura (finas demais), curvatura incorreta, koshirae de qualidade ruim e, principalmente, geometria incorreta. Porém, o que mais “chocou” a então comunidade foram as afirmações de que se tratavam de técnicas tradicionais e de que o produtor era “samurai”. A foto a seguir é de uma dessas espadas, publicada no Orkut em Julho de 2007:




Ao ser confrontado com essas observações, as desculpas de que eram especificações ordenadas pelo cliente logo surgiram; Mas esse tipo de espada continuou a ser produzida como “padrão”, da mesmíssima forma, pelo “katana kaji”, com os mesmos problemas. Inclusive, até meados de 2010-12, as “kataná” produzidas pelo “samurai paranaense” não possuíam “hamon”, a linha de têmpera, uma vez que não são construídas com aços diferentes nem tratadas com têmpera diferencial. Em torno dessa época, o mesmo passou a desenhar quimicamente (com percloreto de ferro provavelmente) linhas de hamon falsas nas espadas. Durante algum tempo, essas espadas continuaram a inundar o “mercado” especialmente entre os aficionados por cultura japonesa, ainda com diversos problemas de construção, koshirae de qualidade baixa e, especialmente, geometria incorreta. Até aí, o dano ainda não era tão grande: o senhor Edson apenas era desonesto sobre ser o “único” fabricante de espadas japonesas no país e sobre ser “samurai”. Seus preços nesse período eram relativamente modestos, considerando-se o mundo da cutelaria artesanal, embora suas espadas tivessem vários problemas e ele JAMAIS haver mostrado publicamente nenhuma imagem de si mesmo de fato forjando, ou fazendo o tratamento de suas espadas; sua oficina, pelas poucas imagens que se tem e relatos de visitantes, contava apenas com uma pequena forja a carvão e um esmeril simples. Durante esse período, de fato, acredito que o senhor fabricava essas lâminas, que no geral persistiam com falhas cosméticas e especialmente na espessura inadequada para espadas japonesas e na geometria, novamente, como se vê abaixo:
As fotos de muitas espadas produzidas nesse período “desapareceram”, e tornou-se difícil relacionar essas espadas ao fabricante. Os erros presentes nessas peças, embora diminuam seu valor comercial, evidenciam que, em algum momento ao menos, houve de fato a tentativa de produzir espadas. Embora seja muito estranho alguém que diz estudar há décadas cometer algumas destas falhas. E é exatamente neste ponto que tudo fica mais nebuloso: em meados de 2015, como num passe de mágica, a qualidade de lâminas e koshirae do senhor Edson pareceu melhorar de forma repentina e milagrosa:

As falhas cosméticas desapareceram (ao menos aos olhos leigos), e a geometria se tornou muito melhor definida: as espadas passaram a contar com linha de hamon (ainda que falsa) e polimento muito superior ao que se via nas espadas originais. Segundo Edson, ele passou a “importar alguns materiais diretamente do Japão”, e por isso suas espadas melhoraram. Parece estranho de alguém que nessa época já dizia forjar há mais de 20 anos e só neste momento resolveu “melhorar” e corrigir essas falhas, e subir exponencialmente os valores de suas espadas. Mas não chegamos ainda no fundo do poço.

Nesse questionável boost de melhora (sem que houvesse melhora nos equipamentos de sua oficina) com supostas “Importações do Japão”, surgem historias de que o “forjador mágico” utiliza “aço austríaco” nessas espadas e inscrições de “lâmina bimetal” aparecem em espadas que claramente não são construídas por métodos como samurai, que de fato utilizariam dois metais: ora, ou é aço 5170, ou é “bimetal”. Se é apenas 5170 não é “bimetal”. E mais, este aço é COMUM, usado em cutelaria, e pode ser comprado em diversos lugares em Curitiba. Não há necessidade alguma de atribuir origem austríaca (claramente inverídico).

Finalmente, a partir daí, TODAS as “katanas” supostamente feitas pelo senhor Edson passam a receber koshirae importados diretamente do Jap...digo, CHINA. Sim, sites como Ali baba, Ebay e Ali Express contam com DEZENAS de fabricantes de espadas (e peças) e vendem kits prontos para montagens de espadas, da lâmina ao koshirae completo!
Ora, como ultima defesa do Suemitsu, eu poderia argumentar que a produção tradicional de espadas NO JAPÃO ANTIGO era um trabalho altamente especializado, onde vários artesãos eram responsáveis cada um por parte do processo: um polidor, um forjador, um fabricante de koshirae, um artesão de madeira... mas isso não é a realidade há muito tempo. Com o declínio da atividade, desde o século XIX os artesãos passaram a comumente serem responsáveis por todas as etapas deste processo. E o grande problema aqui é a desonestidade quanto a origem dos materiais. Isso sobre o “koshirae” de suas armas. Mas a pior parte são as lâminas: simplesmente são todas EXATAMENTE iguais, com a mesma geometria, ponta e tamanho. A única variante são os “padrões” de hamon, que Suemitsu equivocadamente insiste em dizer que é a “assinatura do espadeiro”. Isso leva a fortes indícios de que, assim como o koshirae importado da China, essas lâminas atuais também tem a mesma origem, chegando a CENTENAS de espadas supostamente produzidas por ele em períodos curtíssimos: encontramos em leilão uma espada marcada como “nº 82”. Suemitsu deve fazer milagres sem um martelo pneumático nem uma forja muito potente: sua produção está em quantidade superior a de muitos mestres armeiros INTERNACIONAIS que contam com dezenas de aprendizes. Deve ser a “magia oriental”.

As espadas “medievais europeias” que Edson fabricou recentemente (ou seria o torneiro mecânico?) demonstram que o sujeitou ou estava com muita má vontade quando fez as espadas, ou desconhece completamente os métodos de desbaste e construção da geometria de espadas:
Em 2017, nossa estrelinha complicada recebeu em um certificado o título de “katana kaji”, de uma entidade de artes marciais. Sim, isso não faz sentido nenhum; é como alguém fazendo escola de piloto e recebendo o título de engenheiro mecânico. Além disso, a legitimidade da tal entidade “World Combat Union” (que existe apenas no Facebook) não possui autoridade alguma para conferir esse título: a entidade que controla, autentifica e regula a atividade de forjador de nihonto é a Nihontō Bunka Shinkō Kyōkai (Society for the promotion of Japanese Sword Culture) e APENAS ela, que controla, inclusive, a pouca produção de aço tamahagane que ainda existe no Japão.
Em última análise, Suemitsu parece ter sido alguém que começou com intenções honestas no ramo da cutelaria, embora um pouco enviesado à mística oriental, e acabou se perdendo dentro de seu próprio mito sem construir nada sólido quanto a cultura japonesa, apenas reproduzindo misticismo popular. Por lucro? Por húbris? Nunca saberemos. O que podemos saber com certeza é que a maneira como ele se promove é desonesta e tendenciosa, e direta/indiretamente lesou muitas pessoas.