Nestes últimos séculos vimos um fenômeno acontecer nas artes
marciais, o processo de esportivização. Este assunto é polêmico
entre os artistas marciais, pois muitos alegam que o esporte degrada
a marcialidade destas. Este processo de esportivização se tornou
mais evidente no século XX com o advento das olimpíadas modernas.
Mas antes de abordar a olimpíada moderna, retomemos as origens da
inspiração de Coubertin, os jogos olímpicos da Grécia Antiga.
Algumas modalidades das olimpíadas antiga exploravam as aptidões de
guerra como, provas de corrida, pentatlo (que consiste em um evento
de saltos, disco e lança-dardo, uma corrida a pé e
luta), boxe, luta livre e eventos equestres. Ou
seja, a marcialidade esteve na origem das olimpíadas mesmo que
limitado por regras. Marcial se remete a tudo que envolve guerra,
artes militares, bélico.
Outro
conceito que temos que explorar é o de “esporte”.
O conceito de esporte mais aceito no meio acadêmico se detêm em três quesitos: regras, competição e federação.
1. Regras: se há um conjunto de regras (pontuação, punições, etc) para definir ganhadores e perdedores;
2. Competição: se há a organização para realizar competições a onde podem ser colocadas em prática as regras;
3. Federação (instituição): uma instituição que regule e arbitre as regras e organize as competições.
Portanto tudo que tiver estes três quesitos pode ser considerado um ESPORTE, sendo arte marcial casca grossa ou nutela.
Ora, caros
artistas marciais, se o marcial diz respeito a tudo que envolve
guerra, a de concordar que guerras nada mais são do que disputas por
interesses a onde há luta e derramamento de sangue. O esporte também
se caracteriza por uma disputa, duas pessoas ou equipes disputam
entre si por um interesse comum, vencer o adversário. O que
diferencia o esporte de uma guerra é que a disputa esportiva é
limitada por regras. Também há um outro conceito que temos que explorar, o “Jogo”, um jogo é nada mais
do que uma disputa. A partir do momento que uma disputa é definida
por regras, temos um jogo. No jogo haverão táticas e estratégias
para vencer, assim como numa guerra.
O que queremos dizer com isto?
Queremos dizer que a “arte marcial” não esta tão distante assim
do “esporte” o que diferenciam os dois são os objetivos a serem
alcançados que são diferentes. Enquanto que na arte marcial o objetivo e subjugar o adversário, no esporte temos um jogo. Quando uma arte marcial
se torna um esporte os objetivos passam a ser marcação de pontos, a
disputa é limitada por regras e estas podem ser mais ou menos
brandas. Por exemplo: as disputas de karate ao estilo JKA são tão
esportivas quanto as da moderna WKF, o que muda entre elas são as
regras; kendo é tão esporte quanto a esgrima; Taekwondo ITF é tão
esportivo quanto o do WTF, o que difere são as regras. MMA é um
esporte tanto quanto o antigo Vale-tudo, e assim por diante.
O grande idealizador das Olimpíadas modernas, inspirado pelos jogos
da Grécia Antiga, foi o Barão de Coubertin que lançou o conceito
de Fair Play, ou seja, do jogo limpo, sem trapaças, conforme as
regras. Outro conceito é o citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte).
"Não pode haver jogo sem fair play. O principal objetivo
da vida não é a vitória, mas a luta!" (Barão de Coubertin)
A problemática dos Jogos Olímpicos modernos e artes marciais é que as olimpíadas
atuais estão sobre a égide do Fair Play, ou seja, do jogo limpo
entre “cavalheiros”, logo a violência não é bem vinda. Outro
ponto a se considerar é que pela magnitude dos Jogos Olímpicos,
pela sua popularidade, um festival de violência não é nada
atraente para o público leigo em artes marciais. É por este motivo
que a arte marcial quando adaptado a olimpíada tem sua marcialidade,
no que tange a violência, bastante amenizada. No processo de tornar
uma arte marcial modalidade olímpica o COI exige que esta tenha como
objetivo preservar a integridade física dos atletas, é por isto que
o contato é bastante reduzido, o uso de EPI (Equipamento de Proteção
Individual) é uma exigência e as penalidades devem combater o uso
da agressão explícita. Estas regras ainda mudam constantemente para
tornar a modalidade mais competitiva.
Todas as artes marciais e lutas que entraram nas olimpíadas passaram
por este processo de abrandamento da agressividade, tanto o judo,
taekwondo, luta greco romana, luta livre, esgrima, boxe, e agora o
karate, foram suavizadas para se encaixar nos ideais de Fair Play
exigidos pelo COI. A arte marcial que não fizer estas adaptações
não se torna modalidade olímpica. Outras artes marciais e lutas que
estão no processo de se tornar olímpicas (são elas, sumo, wushu,
muaythai, sambo) passarão por este mesmo esquema.
Ai entramos no ponto polêmico que revolta alguns artistas marciais
mais tradicionais e avessos ao esporte olímpico. Este é um assunto polêmico
porque há os que concordem e há os que discordem, há os que querem
a disputa com golpes mais contundentes, há os que querem apenas uma
disputa por pontos. Porém entendam, modalidade continua tendo sua
ligação com arte marcial apesar disto.
Qual esta certo?
Vai depender do objetivo que cada um quer alcançar. Se seu objetivo é
procurar a marcialidade que o praticante a busque isto em seu treino, treine socos, chutes
e golpes eficientes num combate real. Se seu objetivo é ganhar medalhas, treine com
as regras, dê golpes que são só para marcar pontos. Há caminho e
espaço para todos, pois nem todo mundo que pratica vai querer ir
para uma olimpíada, mesmo porque o esporte de alta performance é
seletivo, o que faz com que muitos queiram e poucos cheguem lá.
Portanto espaço para a arte marcial genuína sempre terá. Existem as mais diversas federações com as mais diversas regras competitivas, escolha a que melhor lhe convém.
Há arte marcial na modalidade esportiva?
A essência da marcialidade sempre estará nas artes marciais que
passaram pelo processo de esportivizaçao, mais brando, limitado a
regras, mas estará lá intrínseco. A arte marcial sempre estará
lá, mas como já falamos, com enfoque diferente que não são os de
fazer dano, mas de marcar pontos. Com certeza quem optar por este
caminho não saberá dar outro tipo de golpe que não seja o para
marcar ponto. Numa situação combate real ficará em desvantagem e é bem
provável que se machucará, mas cada um com suas escolhas.
O Fair Play é uma ideologia ruim para as artes marciais?
Acreditamos que na dose certa pode ser positivo, pois não há nada
de errado em seguir o Fair Play. Filosofias como por exemplo a do
Budo tem pontos em comum com o Fair Play, basta ver o Kendo. O Fair
Play estimula sentimentos nobres que não podem ser desprezados e
devem ser incentivados. O que não se pode é desvirtuar este
princípios somente por conta de ganhar medalhas. Por outro lado
sabemos que isto é um tanto complicado, pois ninguém vai para uma
olimpíada para sair de mãos vazias. Porém perder e ganhar fazem
parte da vida, saber trabalhar alegrias e frustrações é que vão
fazer toda a diferença neste processo. As distorções sempre
ocorrem, pois nós seres humanos procuramos compensar nosso ego,
somos corruptíveis, falíveis, porém não devemos desacreditar de
valores por conta de alguns que se deixam corromper.
Uma demonstração de Fair Play nos Jogos de Baku 2015.
O que nós artistas marciais definitivamente não queremos com o
esporte?
É o que vemos atualmente em algumas modalidade a onde jogar com as
regras, marcar pontos, ganhar medalhas é mais importante do que
lutar e demonstrar o mínimo de marcialidade que fez daquela
modalidade uma arte marcial. Um taekwondista tradicional não quer
ver um espetáculo de chutes fracos somente para ativar os
dispositivos eletrônicos dos EPIs. Igualmente no Karate os caratecas
não querem ver lutas sem o mínimo dos princípios do karate. Não
queremos ver lutas a onde os competidores jogam com as regras e
ganham sem dar um golpe, somente por saldos de penalidade devido a falta
de combatividade. Sinceramente, se for para acabar com o pouco de
marcialidade que o Fair Play não consegue acabar, então realmente não
vamos querer artes marciais nas olimpíadas.
Abaixo um vídeo questionando
o antes e o depois da introdução dos coletes eletrônicos no
Taekwondo, arte marcial que decaiu muito no conceito "arte
marcial" após se tornar olímpica.
Quais as vantagens de uma arte marcial olímpica?
Há muitas como, maior visibilidade, mais patrocínio, mais
divulgação, mais incentivo, mais popularidade. Ainda não surgiu
evento poliesportivo com mais visibilidade do que as olimpíadas. Nem
mesmo MMA tem tanto apelo. A Copa do Mundo FIFA consegue visibilidade
equivalente, mas esta gira em torno de somente de um esporte. A olimpíada é uma vitrine!
Qual a nossa postura com relação ao esporte nas artes marciais:
Como já dissemos, uma arte marcial não deixa de ser arte marcial
porque se tornou um esporte, as regras podem reduzir a periculosidade
de lesões ao máximo, mas ainda assim a marcialidade estará na
essência.
Qualquer arte marcial que possui regras de competição se torna
esporte independente de serem mais ou menos brandas (repito, MMA, K1,
Pride, Vale Tudo são esportes porque são disputas com regras).
Arte marcial e esporte podem andar juntos pois tudo é uma questão
de escolhas, não podemos negar o esporte a quem quer seguir o
caminho do alto rendimento, assim como não podemos menosprezar quem
quer aprender a arte marcial na sua essência. Enfim, há espaço
para todos.
Não somos contra ao esporte desde que não descaracterize a essência
da arte marcial e que o “ganhar” não se torne “ganhar a
qualquer custo”, desde que “jogar com as regras” se torne mais
importante do que fazer uma luta franca e justa. Fair Play também é
ser franco e justo com o adversário dando a oportunidade de
demonstrar suas capacidades.
Nas olimpíadas 2008 atleta de taekwondo agrediu árbitro após discordar de decisão que lhe tirou o ouro |
Sabendo de todos estes conceitos você, atleta ou artista marcial,
podem ter mais embasamento no discurso pró e contra o olimpismo,
além do mais se blindar diante das falácias a respeito do olimpismo
e do esporte nas artes marciais, falácias estas que muito mais
trazem confusão do que esclarecimento. Lembramos, por exemplo, que
no karate há gente querendo tirar vantagens com atitudes desonestas
desde que o karate se tornou candidato às olimpiadas. Não raro
vemos associações e supostas “federações” usando a
nomenclatura “Olímpica” no intuito de tirar vantagens e induzir
as pessoas ao erro, sendo que estas sequer são reconhecidas pelo
COI.
Obs.: como exemplo ia colocar um vídeo de uma final da de kumite feminina da WKF a onde as lutadoras passaram os 3min de combate sem dar um misero golpe. Pois bem, a WKF deu um fim no vídeo e, depois deste vexame, mudou as regras. Atualmente o atleta que dá o primeiro golpe tem vantagem em desempates. Quem souber do vídeo em questão nos mande o link nos comentários.
Obs2.: Após as olimpíadas de Tokyo 2020 veio a polêmica do nocaute das finais do kumite masculino de karate, a onde o nocauteado ganhou ouro, porém este texto explica bem o contexto, pois tudo depende das regras, e no caso as regras da WKF permitem tal situação, contato excessivo é penalidade.